«O Ocidente não é um sistema político-cultural homogéneo. O que se exprime pela voz dos EUA e seus aliados (cada vez menos em número e com menor grau de convicção) é um Ocidente agonizante e sem norte; incapaz de agir de acordo com os princípios e valores que pretendeu seguir e impor aos seus inimigos, parece-se cada vez mais com estes. Barbarizado na luta contra o que designa por barbárie, transforma-se no mal que desenha os eixos do mal, reduz a força dos princípios ao princípio da força e acaba por imolar-se no sangue que faz derramar.
O julgamento de Saddam Hussein ficará para a história como uma das mais grotescas caricaturas da justiça internacional. (…) Foi uma justiça circense, uma farsa como a da justiça revolucionária que Saddam accionou (numa época em que era apoiado pelos EUA) para julgar os implicados no atentado à sua vida. Onde está a diferença ocidental, do primado do Direito e das garantias de uma justiça independente?
(…) Cabe, pois, perguntar porque se perdeu a oportunidade de realizar um julgamento (…) que reforçasse a justiça internacional e consolidasse o consenso global sobre a punição dos crimes contra a humanidade. Porque o ocidente bushiano é constituído pela mesma fraqueza que comanda o extremismo do bombista suicida. Reclamando para si da mesma inocência sacrificial que o dispensa de distinguir entre culpados e inocentes, não tolera mediações, negociações, compromissos, enfim, a paz e acima de tudo, não reconhece a dignidade do outro, do outro que mesmo culpado, tem direito a um julgamento justo.
(…) Humilhado pela morte de um irmão (amado ou odiado) em dia sagrado, o povo muçulmano tem toda a razão para crer que o sangue derramado é inocente. A vingança de Saddam é ele ser um ditador sanguinário com o direito, conferido pelos seus algozes, a ser reclamado por muitos como herói ou mártir. Por isso não é por Saddam que os sinos dobram. Os sinos dobram pelo Ocidente bushiano.»
Boaventura de Sousa Santos, “O espectro de Saddam” in Revista Visão de 4/01/2007
Desculpem a longa citação, mas gosto de citar quem diz o que eu penso, muito melhor que eu. Ao que está dito, só acrescento que me choca este retrocesso civilizacional. Seria de esperar um progresso de civilidade, em que a moralidade e a ética pesassem nas decisões políticas. Não, descemos ao nível daqueles que condenamos. Somos básicos, olho por olho, dente por dente.
As milhares de vítimas de Saddam, que ninguém esqueça que pereceram numa época em que o regime era apoiado pelos EUA, os 12320 civis iraquianos e os 3000 soldados americanos, mortos desde o inicio da guerra no Iraque, sentir-se-ão vingados, deixam de ser um peso na consciência e na historia da Humanidade? Não, essa memória, não se apaga, porque se vinga.
E depois o espectáculo da condenação, orquestrado pelos média, divulgado sem pudor. Porquê pensar nas consequências? Porquê pensar que se transformou um ditador odiado, num mártir agora adorado pelo mundo islâmico? Porquê pensar nas crianças que iriam assistir a tudo e iriam perder as suas vidas porque acharam que se trata de uma brincadeira, de uma banalidade?