sábado, janeiro 06, 2007

E viva a civilização ocidental...

«O Ocidente não é um sistema político-cultural homogéneo. O que se exprime pela voz dos EUA e seus aliados (cada vez menos em número e com menor grau de convicção) é um Ocidente agonizante e sem norte; incapaz de agir de acordo com os princípios e valores que pretendeu seguir e impor aos seus inimigos, parece-se cada vez mais com estes. Barbarizado na luta contra o que designa por barbárie, transforma-se no mal que desenha os eixos do mal, reduz a força dos princípios ao princípio da força e acaba por imolar-se no sangue que faz derramar.

O julgamento de Saddam Hussein ficará para a história como uma das mais grotescas caricaturas da justiça internacional. (…) Foi uma justiça circense, uma farsa como a da justiça revolucionária que Saddam accionou (numa época em que era apoiado pelos EUA) para julgar os implicados no atentado à sua vida. Onde está a diferença ocidental, do primado do Direito e das garantias de uma justiça independente?

(…) Cabe, pois, perguntar porque se perdeu a oportunidade de realizar um julgamento (…) que reforçasse a justiça internacional e consolidasse o consenso global sobre a punição dos crimes contra a humanidade. Porque o ocidente bushiano é constituído pela mesma fraqueza que comanda o extremismo do bombista suicida. Reclamando para si da mesma inocência sacrificial que o dispensa de distinguir entre culpados e inocentes, não tolera mediações, negociações, compromissos, enfim, a paz e acima de tudo, não reconhece a dignidade do outro, do outro que mesmo culpado, tem direito a um julgamento justo.

(…) Humilhado pela morte de um irmão (amado ou odiado) em dia sagrado, o povo muçulmano tem toda a razão para crer que o sangue derramado é inocente. A vingança de Saddam é ele ser um ditador sanguinário com o direito, conferido pelos seus algozes, a ser reclamado por muitos como herói ou mártir. Por isso não é por Saddam que os sinos dobram. Os sinos dobram pelo Ocidente bushiano

Boaventura de Sousa Santos, “O espectro de Saddam” in Revista Visão de 4/01/2007


Desculpem a longa citação, mas gosto de citar quem diz o que eu penso, muito melhor que eu. Ao que está dito, só acrescento que me choca este retrocesso civilizacional. Seria de esperar um progresso de civilidade, em que a moralidade e a ética pesassem nas decisões políticas. Não, descemos ao nível daqueles que condenamos. Somos básicos, olho por olho, dente por dente.

As milhares de vítimas de Saddam, que ninguém esqueça que pereceram numa época em que o regime era apoiado pelos EUA, os 12320 civis iraquianos e os 3000 soldados americanos, mortos desde o inicio da guerra no Iraque, sentir-se-ão vingados, deixam de ser um peso na consciência e na historia da Humanidade? Não, essa memória, não se apaga, porque se vinga.

E depois o espectáculo da condenação, orquestrado pelos média, divulgado sem pudor. Porquê pensar nas consequências? Porquê pensar que se transformou um ditador odiado, num mártir agora adorado pelo mundo islâmico? Porquê pensar nas crianças que iriam assistir a tudo e iriam perder as suas vidas porque acharam que se trata de uma brincadeira, de uma banalidade?

4 comentários:

cãorafeiro disse...

atenção ao conceito de civilização...

tem muito que se lhe diga.

não existe civilização ocidental, não pelo menos no sentido etnocênctrico do termo.

existe universalismo, que vai buscar a cada cultura o melhor.

exemplo:

gandhi.

foi PROFUNDAMENTE influenciado por TOLSTOY. duas pessoas com contextos culturais completamente diferente. o primeiro um indiano do gujarat que teve acesso à cultura britânica. o segundo um russo patriota mas também universalista.

martin luther king.

PROFUNDAMENTE influenciado por Gandhi...

martin luther king, por sua vez influenciou a luta contra o apartheid na A´frica do Sul (graças ao sucesso na luta contra a segregação racial nos EUA)

curiosamente, foi o facto de ter sido alvo de discriminação racial na ÁFRICA DO sUL que motivou Gandhi a desenvolver a sua doutrina da resistência baseada na não violência...

o mundo é pequeno demais para ainda o estarmos a dividir em civilizações. ou defendemos a civilização, através do universalismo, ou ficamos sujeitos à barbárie.

Hopes disse...

Cão,

É bom ver-te de regresso, após umas merecidas férias.

Deixa-me esclarecer a forma como eu interpretei o conceito de civilização, tendo sempre em conta que autores diferentes podem ter definições diferentes. E a tua definição pode ser diferente desta.

Eu utilizei o conceito de civilização enquanto identidade cultural que caracteriza uma determinada sociedade, com ideais, valores e costumes específicos. Não tem a ver com etnias, tem a ver com modos de vida e com valores que uma determinada sociedade tem para si.

A humanidade não tem uma única identidade cultural. E se o ideal era que existissem valores universais, a realidade é bem diferente…

O universalismo é um traço civilizacional, é um valor que eu não vi nenhuma sociedade, globalmente, defender, muito menos a Ocidental. Infelizmente apenas pequenos grupos agem de acordo com esses valores universais, que vão buscar o melhor de cada cultura. O universalismo ainda é um ideal, uma utopia (bem que eu queria que assim não fosse).

A realidade é que existe uma elite sócio-política que gosta de falar de civilização ocidental como bastião de princípios éticos e morais. É sobre essa noção de civilização que eu ironizo e é essa ideia de civilização ocidental que eu questiono. O que pretendo demonstrar é como estamos longe do universalismo, e é isso que eu lamento profundamente…

Anónimo disse...

Eu penso que a violência, a vingança, o "olho por olho, dente por dente", muito característicos de outras civilizações são inaceitáveis Para os ocidentais cuja matriz cultural assenta ou trm assentado nos valores do Cristianismo.

Anónimo disse...

Só tenho pena, hopes, que tenhamos sido os dois únicos - que eu conheça - a chamar a atenção para a "glória e esplendor" do fim de Saddam...
Quanto à noção de civilização, é daqueles conceitos que tem tantas definições quanto pessoas a pensar nela. Por isso, tanto @ cãorafeiro como a hopes têm noções perfeitamente válidas e com as quais concordo: em planos diferentes, ambas são verdade. Infelizmente, ambas têm também razão em apontar quão longe estamos do universalismo - até porque ele não interessa a quem proclama teses de "choque de civilizações" e "fim da História"... tragicamente, aproximamo-nos mais da barbárie (não por acaso, foi a precisa palavra que utilizei para descrever a execução de Saddam Hussein) do que da verdadeira civilização...