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sexta-feira, junho 18, 2010

Adeus Saramago



Pelo espírito crítico, pelo inconformismo, pela vontade indomável de pensar a realidade e de a mudar, Saramago vai fazer-nos imensa falta. Felizmente fica a sua obra e as suas palavras para nos incutirem a necessidade de ter um espírito tão livre como o dele.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Saramago: Religião e espírito crítico

Não que eu goste de temas demasiado batidos e debatidos, mas toda a polémica gerada em torno das declarações de Saramago merece-me um comentário obvio. Ainda não somos capazes de conviver com opiniões radicalmente opostas aquilo que nos é vendido como socialmente aceite ou verdade absoluta. As críticas do autor à religião, à Católica em particular, mas não só, são conhecidas desde “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Está no seu direito de não gostar das historietas da Bíblia, são cruéis e desumanas, muitas serão, outras não merecerão esses adjectivos. Seja como for, já era tempo dos Católicos viverem com a diferença e aceitarem que nem toda a gente tem que idolatrar livros sagrados como verdades absolutas. Mas o que seria de esperar de pessoas que acreditam piamente que um Deus que pede à Abraão o sacrifício do seu próprio filho, é misericordioso e omni-tudo? Não me espanta que quem ache o infanticídio aceitável desde que seja uma demonstração de fé e que nunca tenha analisado criticamente todo este tipo episódios bíblicos, venha dizer que a cidadania portuguesa deve ser retirada ao escritor. Concorde-se ou não com as opiniões de Saramago, só tenho a dizer que seriamos certamente um povo melhor, se todos tivéssemos o espírito crítico deste senhor. E só mais uma observação, as reacções às declarações do Saramago só vêem demonstrar como a religião e tudo o que dito e feito em seu nome, gera intolerância, ódio e radicalismo. Se contassem os crimes feitos em nome de Deus, deixavam o Saramago em paz...

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Negro dentro de mim...

Só a escuridão. A escuridão que se vê quando se fecha os olhos e se vê: a cor negra e os pequenos seres de luz que a habitam. Sem conseguir olhar fixamente para o negro ou para a luz. O negro dentro de mim. As figuras de luz que o quebravam. Um negro tão absoluto, tão profundo e tão infinito que o olhar avançava por ele sem encontrar um lugar onde pudesse deter--se. Abri os olhos. Dentro de mim era vazio. Com o olhar sobre o corpo da minha mãe, via na janela o céu subitamente negro. A noite. A ideia do meu braço a tremer. O céu negro como o meu interior. E o céu, negro, negro, negro, rasgou-se como se todo o céu e toda a sua escuridão fossem um pano negro sobre o mundo. O céu rasgou-se num ruído de rochas a afastarem-se depois de milhões de anos. E o céu gritou um trovão que era a voz do mundo e da escuridão, um trovão que era a voz de todo o sofrimento do mundo. Um grito de terror. O céu e o mundo a dizerem um grito negro que explodia dentro de mim. Todo o sofrimento do mundo explodiu dentro de mim. A chuva começou a cair em gotas grossas sobre a noite. A chuva era feita de gotas grossas e negras que caíam do céu e que lançavam sobre a terra todo o sofrimento e toda a escuridão. Entrava chuva no quarto. (…) Entrava vento que trazia chuva e mais sofrimento e mais escuridão. A noite e a escuridão e o sofrimento eram como se tivesse passado os portões de ferro da morte. O céu gritava trovões, e a morte, repetida, enchia a casa e explodia dentro do meu peito vazio e negro.


José Luís Peixoto, "Uma casa na escuridão", p.173

terça-feira, outubro 28, 2008

Labirinto

«... Acabamos por nos envaidecer com subentendidos que afinal mudam tudo, como um sinal negativo colocado discretamente à frente de uma soma; esmeramo-nos, neste ou naquele passo, em fazer de uma palavra mais audaciosa o equivalente a uma piscadela de olho, ao levantar da parra, ou ao descer da máscara, logo a seguir reposta, como se nadafosse. Opera-se então uma triagem entre os nossos leitores; os parvos acreditam em nós; outros supondo-se mais néscios que eles, repudiam-nos; os que ficam, aprendem a desenvencilhar-se no meio do labirinto, a saltar e a contornar os obstáculos da mentira.»


Marguerite Yourcenar, "A obra ao negro", Ed. D. Quixote, p. 88.


quarta-feira, setembro 24, 2008

Um Homem na multidão: para V.A.

«(...) A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente passavam sem o ver.

Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas.

Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos. O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão.

(...) Agora eu penso no que poderia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. (...)»

‘O Homem’, em ‘Contos Exemplares’ de Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, setembro 07, 2008

Por momentos...


Ser feliz por momentos é algo de que não se deve ter vergonha. Momentos que o fim torna ridículos. A felicidade, como o amor, é um sentimento ridículo. Mas a felicidade, como o amor, só é ridícula quando vista de fora. A felicidade, como o amor, só é ridícula antes ou depois de si própria. A felicidade são momentos que, no seu presente fugaz, são mais fortes do que todas as sombras, todos os lugares frios, todos os arrependimentos. Ser feliz em palavras que, durante essa respiração breve, mudam de sentido. E nem a forma do mundo é igual: o sangue tem a forma de luz, as pedras têm a forma de nuvens, os olhos têm a forma de rios, as mãos têm a forma de árvores, os lábios têm a forma de céu, ou de oceano visto da praia, ou de estrela a brilhar com toda a sua força infantil e a iluminar a noite como um coração pequeno de ave ou de criança.



Momentos que o fim torna ridículos. Momentos que fazem viver, esperando por um dia, depois de todas as desilusões, depois de todos os arrependimentos e fracassos, em que se possam viver de novo, para de novo chegar o fim e de novo a esperança e de novo o fim. Não se deve ter vergonha de se ser feliz por momentos. Não se deve ter vergonha da memória de se ter sido feliz por momentos.


José Luís Peixoto, "Uma casa na escuridão", p. 46-47.



quarta-feira, novembro 14, 2007

Falta qualquer coisa

[...] numa tacinha, achamos a nossa vida de hoje e qual o sentido da nossa vida de hoje, o que fazemos com ela, dias atrás de dias, o supermercado, o jantar no restaurante ao domingo, a maçada das crianças às vezes e não era bem isto que nos apetecia, não era bem isto o que tínhamos desejado, falta qualquer coisa, onde é que erramos, o que falhámos, não somos infelizes mas também não temos o que secretamente ansiávamos, os anos vão passando



(- o que tu cresceste)


E não temos o que secretamente ansiávamos, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta

- E agora?


António Lobo Antunes “Nada de especial” in Visão de 8 de Novembro de 2007

quarta-feira, junho 06, 2007

"Cinco livros, Cinco blogs…"

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O blog “A Dreamer’s space” lançou-me o desafio de nomear 5 livros que tenha lido e depois lançar esse desafio a outros cinco bloggers. A ideia parece-me interessante, nós também somos aquilo que lemos… E estaremos a promover a leitura e a despertar a curiosidade daqueles, que ainda não tiveram o prazer de ler estes nossos livros. Ou então, não…


Voltando ao desafio, é uma tarefa muito díficil escolher 5 livros... Bem, acho que o critério vai ser... os mais inesperados de entre os meus preferidos. Então cá ficam eles:


Albert Camus – “O Estrangeiro”


Eça de Queiroz – “Os Maias”


Virgil Gheorghiu – “A 25ª Hora”


José Luís Peixoto – “Antídoto”


Isabel Allende – “O meu país inventado”


E agora, lanço gentilmente o mesmo desafio aos cinco excelsos blogs:


Insustentável Leveza


O Bico de Gás


Devaneios Desintéricos


Tolentino Cupertino Grunhof


Le nozze di figaro


terça-feira, maio 29, 2007

Nada no horizonte

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«Estava realmente perdido de todas as maneiras. Passara a vida a sonhar um Portugal melhor numa península melhor e num mundo melhor. Para que essa aspiração fosse verdade, julgava que bastaria o desaparecimento das tiranias que aqui e ali oprimiam os povos.

Ora a verdade é que os tiranos carismáticos, um a um, iam desaparecendo (…) e, quanto mais parecia debelada, mais a opressão se enraizava no corpo social e mais sólida e subtilmente se implantava nele. E olhava sem antolhos os horizontes promisssores da democracia. Cada vez se tornavam menos nítidos no meu desespero.»


Miguel Torga “A criação do mundo”

quarta-feira, novembro 15, 2006

Capricórnio a seus pés

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A noite transforma os sons, os gestos e as palavras. Os sons que pontilham aquilo que ouço seriam iguais, aos que durante o dia, se misturam uns com os outros. No entanto, aqui, são únicos e nocturnos. Os gestos são únicos e nocturnos. Quase em silêncio, digo: amor. Diante de mim essa palavra existe durante muito tempo na noite, entre os sons, entre os gestos. Existo eu e existem as paredes da casa. A solidão. Reflectida pelo espelho, começo a despir-me. (...) No espelho, a minha barriga, o meu peito e os meus ombros são como estivessem em carne viva. Tu nunca saberás que sou um monstro. A ternura e o desejo não são suficientes para vencer aquilo que é invencível.

Como o veneno, como Capricórnio, como o Inverno, suporto o segredo do que descubro sozinha. A pele do meu peito transparente, demasiado fina, é como os meus olhos a mostrarem tudo o que escondo. Eu sou um monstro. Como o veneno, como Capricórnio, como o Inverno, o meu caminho é inevitável. Eu sou um monstro. Nunca ninguém me passará os dedos pelos ombros. Os lábios. Nunca ninguém me fará carícias nos seios. Beijos. Eu sou um monstro. No meu quarto, neste quarto, continuarei a esperar que adormeça antes de me despir. Tu continuarás longe a imaginar-me sem entender. E a noite continuará para sempre reflectida neste espelho.


José Luís Peixoto, “Capricórnio a seus pés” in Antídoto. Lisboa: Temas e debates, 2003. pp. 47-48.

Imagem: Girl before a mirror de Pablo Picasso, 1932