quarta-feira, novembro 15, 2006

Capricórnio a seus pés

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A noite transforma os sons, os gestos e as palavras. Os sons que pontilham aquilo que ouço seriam iguais, aos que durante o dia, se misturam uns com os outros. No entanto, aqui, são únicos e nocturnos. Os gestos são únicos e nocturnos. Quase em silêncio, digo: amor. Diante de mim essa palavra existe durante muito tempo na noite, entre os sons, entre os gestos. Existo eu e existem as paredes da casa. A solidão. Reflectida pelo espelho, começo a despir-me. (...) No espelho, a minha barriga, o meu peito e os meus ombros são como estivessem em carne viva. Tu nunca saberás que sou um monstro. A ternura e o desejo não são suficientes para vencer aquilo que é invencível.

Como o veneno, como Capricórnio, como o Inverno, suporto o segredo do que descubro sozinha. A pele do meu peito transparente, demasiado fina, é como os meus olhos a mostrarem tudo o que escondo. Eu sou um monstro. Como o veneno, como Capricórnio, como o Inverno, o meu caminho é inevitável. Eu sou um monstro. Nunca ninguém me passará os dedos pelos ombros. Os lábios. Nunca ninguém me fará carícias nos seios. Beijos. Eu sou um monstro. No meu quarto, neste quarto, continuarei a esperar que adormeça antes de me despir. Tu continuarás longe a imaginar-me sem entender. E a noite continuará para sempre reflectida neste espelho.


José Luís Peixoto, “Capricórnio a seus pés” in Antídoto. Lisboa: Temas e debates, 2003. pp. 47-48.

Imagem: Girl before a mirror de Pablo Picasso, 1932


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