quarta-feira, outubro 11, 2006

É a vida...

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Depois de assistirmos às notícias sobre raptos, assassinatos, acidentes de viação, mortos palestinianos e israelitas, descobertas de centenas de vítimas Taliban asfixiadas em contentores no Afeganistão, surge uma notícia que, como uma luz divina, redime todo o mal espalhado pela Terra: nasceu um bebé panda no Zoo de Pequim! O apresentador sorri largamente, pisca mesmo um olho cúmplice aos telespectadores. Depois das imagens de futebol, remata enfim, com tom sábio: «É a vida!»

É a vida, pois. Que mais queria? É a vida lá fora, não há nada fazer, é assim, vivei a vossa com paz e serenidade, não há nada a temer, é lá longe que tudo acontece (...) o telespectador é colocado dentro do mundo mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não o vivendo. «É a vida», a nossa, a de todos. (...)

Paradoxo: por um lado, a televisão fabrica-me representações de um mundo longínquo; por outro, esse é o mundo adequado ao meu mundo. É o que me convém: se as imagens do mundo, não me dizem respeito ou me dizem longinquamente respeito, então está tudo bem assim. Eu nem me apercebo do longe, do afastamento, da ausência de mim a mim. Não há paradoxo, porque não há consciência dele. Não há sobressalto de pensamento. Tudo se mistura, talvez. Mas não «é a vida»?

Lembremo-nos que esta expressão vem de longe, e de outra zona discursiva: costumava terminar os comentários e as análises de António Guterres. Com uma leve carga de resignação, ela pretendia exprimir uma velha sabedoria cristã: aceitemos os males do mundo, os dissabores, tudo o que vai contra a nossa vontade, porque isso resulta de uma lógica e de um poder que nos ultrapassam. E já que a lógica do tempo histórico, é imbatível, aproveitemos então para, na nossa pequena esfera, tirarmos pequenos benefícios individuais. O sentimento de responsabilidade por uma comunidade, por um país, parece ter desaparecido.

Excerto de José Gil, Portugal, hoje: o medo de existir. Lisboa, Relógio de Água, 2004. pp. 8-13.

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