Vamos chama-las vidas a prazo
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Ainda bem que há exemplos de bom jornalismo, confesso que às vezes me esqueço disso, dada a banalidade de tantos artigos que nos entram pelos olhos. Finalmente um artigo que faz uma excelente análise da situação precária de um milhão de portugueses. Já não era sem tempo… A realidade da precariedade laboral em Portugal, tem sido varrida para baixo do tapete, enquanto se tenta vender a ideia da flexisegurança.
«Foi no início dos anos 90 que os primeiros casos de «falsos recibos verdes» (um trabalhador que cumpre as mesmas funções dum empregado por conta de outrem, com horário, hierarquia, posto de trabalho, ordens de superiores) entraram pelo gabinete de Garcia Pereira. Hoje, continua a não haver dados exactos, pois «como é uma prática ilegal, não há números fidedignos». E assiste-se a novas tentativas de dissimulação do fenómeno, como a constituição de empresas sub-contratadas para prestar serviços.
(…) No século XXI, em Portugal, «continua a praticar-se 'dumping social'», denuncia Garcia Pereira. «Os trabalhadores a recibo verde são mão-de-obra dócil e barata. Não têm quaisquer custos para o trabalhador e não têm qualquer direito. Além disso, têm uma dupla tragédia em cima: se são despedidos ficam sem o seu salário e sem direitos sociais.»
As empresas ainda obedecem à lógica de que «só podem existir empresas estáveis com pessoas instáveis». Quanto à Inspecção-Geral de Trabalho, que tem por papel fiscalizar casos de fraude, a sua actuação é manifestamente insuficiente, segundo o advogado: «A OIT (Organização Internacional de Trabalho) recomendou que Portugal tivesse 750 inspectores no quadro. Neste momento, temos 252 inspectores para todo o país. Há uma total incapacidade de resposta. E também uma clara vontade de não 'apertar' com as empresas que têm estas práticas fraudulentas», diz. «A prosseguirmos por este caminho, o desastre é total. A lógica de que trabalhadores desmotivados e receosos são melhores é um disparate pegado.»
Do artigo constam ainda testemunhos reais, de pessoas que sentem a precaridade na pele. Serão muitas mais, mas têm medo de dar a cara e perderem o sustento, que apesar de precário é o único que têm. Infelizmente para elas e para todos nós, enquanto sociedade, estas pessoas são vistas como números e não como seres humanos. Só assim se compreende que existam vidas como esta:
«O homem, de meia idade, era bem-parecido. Ar distinto, fato e gravata, professor universitário, respeitado por todos. Dava aulas numa faculdade privada há doze anos, quando um dia foi «dispensado». Havia, no entanto, um 'se'. Apesar de cumprir as funções de docente de forma continuada, o professor tinha um contrato de prestação de serviços, não era trabalhador por conta de outrem. Estava a recibos verdes, e isso significa não ter direito a subsídio de desemprego, doença ou reforma. (…) Sem fonte de rendimento nem rede social de qualquer espécie, este homem só não morreu de fome porque o Banco Alimentar lhe garantia as refeições.
O professor universitário, com mestrado, passou da capital do país para um casebre emprestado, sem electricidade, num descampado nos arredores de Coimbra.»